Foi num dia ameno, nublado, cinza iluminada, e a criança podia ser meu filho, tem o riso de um filho, filho querido que não ouso querer, não mais que um domingo, corre você atrás da criança, corre a criança atrás de você, percorrem-me risos, os ventos me trazem, espalham as folhas do parque; o mundo sob meus cuidados, eu no encalço de dez passos, invisível, como a rotina, como a angústia em minha calma, o ódio não me hesita, sou guardião propenso ao sádico, e todo o mal que tanto lhes temo em mil pesadelos formulados, vou retalhando incansável, me repetindo por tantos meios; vermelho, castanho, amarelo, ladrilhos folhosos de um curso secreto, onde é que eu estava? de repente me perco, me desvio da morte e vou cada vez mais profundo, até que vislumbro, nessa brecha do mundo, minha vida tão certa escondida entre árvores: a criança em teu colo é lançada às alturas, e eu acompanho seu voo, a assistência à espera, minhas mãos se dispõem como se fossem apanhá-la, embora esteja a dez passos, e meu pés, estacados, e num gesto preciso e contra todo o meu medo, ela torna a teus braços, sã e salva e insensata, vocês giram exultantes, meu sorriso se entrega, e na busca de um cúmplice os teus olhos me flagram, recomponho o disfarce, mas agora já é tarde, estou atolado na lama dessa felicidade… Você já foi feliz? Digo em tempo real. Consciente de que estava já sendo feliz. Pois ali eu sabia, eu amava e sabia, no exato instante em que o amor se fazia. Eu procuro ao redor se alguém mais vê aquilo: na minha palma da mão, o sentido da vida. Como agora retê-lo, quando então agarrá-lo, se é preciso fazê-lo, era o que eu não sabia, que a eternidade cedia ao instante seguinte, espalhando ao redor sua velha notícia, e o desejo, esquecido dos limites da vida, é trazido de volta à clausura do corpo, e tudo se lembra absurdo de novo, felicidade é vertigem, é o sonho da queda. Toda a graça alcançada diluída em segundos, tão claro, tão líquido, na lentidão da memória, a eternidade e seu ápice vai me escapando entre os dedos, e o que se passa atravessa, nada vivo me toca, estou na sala de um filme que só eu o percebo, deus onisciente dessa coisa sem volta, a premissa do abismo era o princípio de tudo, e o fim se anuncia mesmo ainda no meio, porque tudo já houve, e nem um filho nos salva, nenhum sentido resiste ao sentido ao tempo, enquanto o mundo prossegue, o meu curso é reverso, arrastado por lágrimas que ainda não foram, é o passado de novo vaticinando o futuro, tão difícil é me ater ao que me acontece: teu sorriso adiante, tão lindo e tão doce, quanto tempo ainda a salvo da atroz descoberta? Eu venderia minha alma se esse fosse o preço, mas de que vale o eterno se todo o resto é finito, e só no presente há de ser teu sorriso, neste dia em que fico e você já o deixa, cada vez mais distante, cada vez menos crível, até que jamais haverá existido, a não ser que eu te acorde para o que está sendo: acabei de ter sido feliz para sempre, para sempre e sem dúvida e sem que possa mais sê-lo, sou feliz como nunca e nunca mais desse jeito, neste dia que passa e vai se tornando intangível, te amei, fui feliz e te agradeço por isso, mesmo irreversível, mesmo diante da noite, mesmo tudo teimando em acabar com este dia, que já não nos pertence, há de acabar para sempre, até chegar o dia em que acabe comigo. E não houve nisso nenhum mal-entendido. Você me entendeu tão perfeitamente… Mas fora de mim. Mas fora de ordem. Fora do que eu sabia e você jamais soube. A consciência do fim, em você, foi o fim, e eu fui a causa de tudo que então evitava. Fui mensageiro do fim, tomado por leviano, toda a felicidade tomada por um engano, e num instante não era, nem parece que foi, esse dia, que um dia, achei que ainda seria, qualquer coisa ainda, ainda que já não fosse. Miragem…