Dia desses o mundo deu cambalhotas e reencontrei uma dessas que jamais foi você. Coincidência. Um casamento. Eu amigo do noivo, ela prima da noiva. Dois deslocados, dois lugares, apresentados à mesa dos sem pares: pronto reconhecimento mútuo, súbita alegria de náufragos… Quanto tempo! tão outro tempo, todo um tempo a resgatar, a mesma época, a mesma cidade, alguns mesmos personagens, você se lembra? e o outro lembrava, e convergia os passados conforme convinha, conforme queríamos, conforme a piada, contra o rumo das coisas e de mais uma união, cujo evidente propósito era acuar os solteiros, não é verdade? e ressoavam as risadas, dois aliados de ocasião, e do pouco que havia de comum e de fato, a gente tirava o máximo, não mais que isso, afinal éramos só conhecidos, amigos de amigos, nisso eu acreditava, eu honestamente acreditava, e prosseguia, da lembrança ao presente, da prudência à intimidade, do saudosismo ao flerte, viciosamente ao flerte, a vida se movendo em retorno, eterno enquanto há ensejo, e jáquetâmoaquimesmo, o velho roteiro não falha, segue o silêncio, um pequeno embaraço, sem a saber ainda palavra, sem saber que, depois do beijo, perde o primeiro que fala: quem diria nós dois… e pensar que o deixei escapar… se tudo de repente então voltasse àquele dia… Aquele dia? Então eu sorria. Desentendido, só sei ir sorrindo. Ela prosseguia com o enigma, e ria da suposta farsa, e tudo me foi relatado como se eu já soubesse da história: o fim de seu primeiro namoro, manhã de já tantos anos, passou o dia chorando até que a noite chegou com o resgate, os melhores amigos, e um plano infalível, a festinha restrita em que eu também estava, tímido tímido, ela lembrava, certa do riso mais uma vez (e eu ria de novo, tão extrovertido, por cima do tímido que não superei), mas já nos conhecíamos, ela ressalvava, de outros acasos, três breves encontros, cuja ordem, o contexto e meu tênis vermelho ela sabia de cor e em detalhes tão mínimos, e depois, de algum modo, apesar de tímido, apesar das palavras nunca dantes trocadas, uma roda de amigos foi se desfazendo e restamos nós dois na varanda da casa, lado a lado sentados, nossos perfis se espelhavam, a conversa fluía, Radiohead embalava, e a noite ia adentro mais do que se esperava, profunda demais para um primeiro sábado, até que eu disse, me precipitava? insensato discurso em meio à madrugada, eu disse que há muito eu pensava nela, e pensava de um jeito que a comovia, que jeito meudeus? o sorriso cedia, alheio à memória que não me tocava, se tudo é vivido pela primeira vez, minha vez se fazia naquele relato, o começo da história, que por acaso era a nossa, e eu fui cogitado pela primeira vez, por um instante, por um milagre, e parece que eu perdi o timing, ela mesma já não sabia, levantou meio bêbada meio assustada, outra hora a gente conversa, e depois não houve mais hora, pobre de ti! tímido tímido, até hoje deixado à espera hora… HAHA! eu ri bem alto. Mas ela, ela não. Jura? me recompus. Jura que o declarei? Desculpe, não lembro muito. Dessa época, só uma náusea. Foi minha idade das trevas, sem lembrança que me valha. Meus dias foram todos perdidos, e à noite eu então procurava: onde estaria? quando seria? por que eu não me conectava? devo ter sido um perigo pro mundo, convencido de que não era nada, mesmo estando entre amigos, aqueles mesmos amigos, dita seja a verdade, já se foram tão tarde, me tornavam mais digno de piedade, da maldita pergunta que não se calava, o que há com você? e eu não entendia, o que podia haver, se não me acontecia, a vida, e no entanto ainda havia, uma busca abstrata como toda verdade, a negação de minha nulidade e toda breve vida falha: uma mulher, mulher que fosse, fosse atenção, aceno, migalha, em torno dos olhos que me notavam erguia-se a figura da mulher amada, e os euteamos, todos eles, todo o estoque lhe despejava, o excesso era minha crença e eu dramaticamente o encarnava, excesso de amores, de pudores platônicos, de um jovem Werther já fora de moda, me guardei em excesso até os vinte anos à espera da deusa que me deflorasse… HAHA! eu ri bem alto. Mas ela, ela não. Criatura demasiada sensível, ela parecia inconsolável. E não voltou mais aos beijos, já nem conseguia me olhar nos olhos. Era preciso acalmar meu anjo ou não havia de levá-la pra casa: não fique assim, eu estou bem aqui, não houve sequelas, nenhum grande trauma, assim foi com todas, e foi sempre comigo, duvido muito que haja outro culpado, lido com isso simplesmente como anos terríveis de aprendizado… Mas não. Era outra coisa. O que a afligia não era remorso. Procurei em seus olhos o que a ofendia e encontrei finalmente sua decepção: euzinho. Rindo de tudo isso. O jovem Werther saiu pela culatra. Minha suposta espera, minha suposta ferida, não eram a prova de um crime, mas os vestígios do amor. Ao reencontro cabia o desfecho, o mito perfeito do daqui em diante: filhos, netos, as bodas de ouro, a partilha da cova. Lamento, minha senhora. Não vou poder ficar. Lição tardia da vida: nada se verifica. O que lhe consta ter havido jamais houve em outro lugar. Miragem…